O
suicídio pela palavra
"Veja", uma das cinco
revistas semanais de informações mais importantes do mundo, levou 2.272
edições, em 44 anos de circulação, para cometer o maior "nariz de
cera" da sua história, do jornalismo brasileiro em muitos anos e talvez da
imprensa mundial. Sua matéria de capa do último número,
do dia 6, abre com 98 linhas da mais medíocre "encheção de linguiça",
como se diz "no popular".
Se tivessem mesmo que sair, esses
quatro enormes parágrafos, numa matéria de apenas oito períodos, tirando boxes
e penduricalhos outros para descansar a vista (e relaxar a cabeça), caberiam na
Carta ao Leitor, espaço reservado à opinião do dono. Mas lá já estava o devido
editorial da "casa", repleto de adjetivações e subjetividades,
conforme o estilo.
A tarefa do repórter Daniel
Pereira não era competir em fúria acusatória com a voz do dono, mas dar-lhe —
se fosse o caso — suporte informativo. Sua matéria devia conter fatos, que constituem a arma de
combate do repórter, infalível diante de qualquer assunto sob sua investigação.
Ao invés disso, metade da sua
falsa reportagem, com presunção de trazer novidades e gravidades suficientes
para merecer a capa da edição, é um rosário de imprecações opiniáticas, no mais
grosseiro e primário estilo, num desabamento de qualidade em relação à Carta ao
Leitor.
Em tom professoral digno de um
sábio de almanaque Capivarol, o editor da sucursal de Brasília, distinto e
ilustre desconhecido (ainda, claro), faz gracejo insosso com o fracasso da
estratégia de Lula de usar a "CPI do Cachoeira" como manobra
diversionista para tirar o foco do julgamento dos integrantes da
"quadrilha do mensalão".
Tentando reparar o efeito inverso
gerado pela iniciativa, Lula procurou o ministro Gilmar Mendes, do STF, para um
acerto, "movimento tão indecoroso que, ao contrário do imaginado pela
falconaria petista, se voltou contra o partido", sentencia o jornalista.
Não sou petista. Nunca fui.
Também não sou nem nunca serei filado a qualquer partido político, enquanto
minha profissão me conceder um espaço para opinar e interpretar. É onde faço
política: tentando armar o meu leitor para ter sua agenda atualizada aos
grandes temas ao alcance da sua vontade.
Votei uma única vez em Lula para
presidente da República, na primeira tentativa dele, contra Collor, em 1989.
Ninguém encontrará um artigo de louvor a ele no meu Jornal Pessoal. Como
não moro em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte, mas em Belém
do Pará, distante dois mil quilômetros da capital federal, não me atrevo a
escrever reportagens a respeito dele.
Para isso, precisaria estar em
contato com pessoas do centro do poder, testemunhar acontecimentos, criar
fontes com acesso às informações diretas. Mas minhas análises, feitas à
distância, não ultrapassam o limite da possibilidade de demonstrar com fatos o
que digo. E só digo o que os fatos me autorizam.
Ao autorizar um repórter,
encarregado de produzir uma reportagem, que requer tudo que está fora do meu
alcance, justamente porque não disponho dos recursos ao alcance de Daniel
Pereira, "Veja" mostra que não respeita a si, aos seus jornalistas e
ao leitor. Desrespeita a própria história, que a fez ocupar um lugar tão
destacado na imprensa mundial e ter-se estabilizado há muitos anos em 1,2
milhão de exemplares de tiragem.
O respeito e a admiração que as
pessoas tem hoje pelos jornalistas da TV Globo era o mesmo, com outra
substância, do início dos anos 1970, quando "Veja" se consolidou como
a mais importante novidade na imprensa brasileira. Antes de passar a trabalhar
na revista, via-me diante de humilhação partilhada por repórteres das outras
publicações, como as minhas. Depois de dar entrevista coletiva, o personagem da
reunião se desculpava e atendia à parte o representante de "Veja",
que costumava assistir calado ao pingue-pongue de perguntas e respostas entre
os colegas e o entrevistado.
Mas não ficávamos furiosos ou nos
revoltávamos pelo privilégio dado ao concorrente. Veríamos, quando a revista circulasse,
que o tratamento diferenciado tinha uma motivação fundamentada na qualidade do
trabalho da revista. Por opção editorial, as matérias não eram assinadas. Mas
tanto os profissionais que iam às ruas atrás das notícias eram bons como ótimos
eram aqueles que reescreviam tudo na redação, estabelecendo uma homogeneidade
de alto nível em todos os textos, do primeiro ao último.
Essa boa novidade levou ao
exagero da padronização, logo corrigido pela liberação dos freios da
centralização: cada jornalista pode desenvolver seu estilo e as matérias
começaram a sair assinadas.
Muitas das matérias que forniram
as páginas da revista eram do melhor jornalismo, vizinho dos textos de autores
da melhor literatura. Tanto pelo domínio do vernáculo como pela consciência de
que jornalismo é a vida pulsando todos os dias em sua materialização factual,
sempre sujeita ao humano, demasiado humano (o que serviu de halo para o
"novo jornalismo" americano).
Com a sucessão de textos do tipo
que agride a essência do jornalismo já há bastante tempo, "Veja" está
prestando um grave desserviço ao Brasil, a pretexto de brecar o avanço do
"lulismo" tirânico e irresponsável. Está fazendo o país retroceder a
um jornalismo praticado até seis décadas atrás, quando o Diário Carioca
introduziu o lide no manual de redação jornalística. Sucederam-se a partir daí
os aperfeiçoamentos que "Veja" consolidou.
A começar pelo curso de formação
que deu aos seus futuros integrantes antes de começar a circular, uma revolução
em matéria de recrutamento de quadros. E pelo elevado padrão de
profissionalismo que estabeleceu, tornando-se uma meta para todos aqueles que
queriam avançar no seu ofício e ter uma vida digna, decente e confortável —
conquistas das quais só a última era frequente, à custa da venda da alma ao
diabo; até "Veja" demonstrar que jornalista também pode ganhar bem
sem se prostituir.
É profundamente lamentável que
essa mesma revista esteja agora, num paroxismo editorial difícil de explicar e
mais difícil ainda de entender, renunciando a todas essas conquistas para se
entregar a uma voragem de apoplexia palavrosa, se a tipologia cabe nessa forma
surpreendente de patologia. Lula pode sobreviver a esse tipo de vírus. O
jornalismo, não.
Querendo ser a coveira de um
líder político esquivo e ambíguo, "Veja" está, na verdade,
cometendo um haraquiri patético, capaz de arrastar consigo muito mais gente do
que a que sucumbiu sob outro desses líderes em transe: Jim Jones.
(Saio da bitola amazônica
nesta carta jornalística pela necessidade de desabafar, que partilho com meus
leitores. Quase meio século de jornalismo autorização a quebra da bitola, I
presume.)