Um julgamento de exceção
Luiz Moreira
Texto completo no Brasil 247
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Penso, no entanto, que durante o julgamento da ação penal 470, o
midiatizado caso do “mensalão”, o STF se distanciou do papel que lhe foi
confiado pela Constituição de 1988, optando em adotar uma posição não
garantista, contornando uma tradição liberal que remonta à Revolução
Francesa.
Esses equívocos conceituais transformaram, no meu entender, a ação penal
470 em julgamento de exceção, por não adotar uma correção
procedimental, que pode ser delineada nos seguintes termos: (1) pressão
pela condenação do réus pelas emissoras de televisão; (2) recusa em
reconhecer aos réus o duplo grau de jurisdição; (3) utilização pelo
Relator do mesmo método da acusação; (4) opção pelo fatiamento do
julgamento; (5) a falta da individualização das condutas e sua
substituição por blocos; (6) a ausência de provas e a aplicação dos
princípios do direito civil ao direito penal e (7) na dosagem das penas a
subordinação de sua quantificação à prescrição.
(1) A cobertura das emissoras de televisão, especialmente a Rede
Globo, insistia em estabelecer um paralelo entre os réus políticos e a
corrupção. Esse paralelo se realizava do seguinte modo: que a necessária
condenação dos réus teria papel pedagógico, pois, com ela, obter-se-ia
um exemplo a ser utilizado numa campanha midiática. Desse modo, uma
concessão do Estado, uma TV aberta, utiliza-se de métodos mercadológicos
para definir que cidadãos são culpados justamente no período em que
esses cidadãos são julgados. Abriram-se espaços para afirmar a culpa dos
réus, sem permitir igual espaço para a defesa. Definido o conteúdo da
mensagem (a culpabilidade dos réus), há a massificação dessa mensagem em
todos os seus telejornais. Claro está que pressão midiática,
patrocinada em TV aberta, cria não apenas um movimento pela condenação
de cidadãos sob julgamento, mas visa alinhar a decisão dos juízes à
campanha pela condenação desses réus. Assim, foi estabelecida uma
correlação entre condenação e combate à corrupção, de modo a estabelecer
que os juízes que são contrários à corrupção devem por isso condenar
esses réus. Contrariamente, os que absolvem os réus assim o fazem por
serem favoráveis à corrupção.
(2) A recusa em reconhecer aos réus o duplo grau de jurisdição. O STF
não deferiu aos réus o direito constitucional a ser julgado pelo
respectivo juiz natural. No Brasil, apenas alguns cidadãos fazem jus ao
chamado foro por prerrogativa de função. Assim, como é corriqueiro no
STF, desmembra-se o processo em que sejam réus cidadãos que não têm essa
prerrogativa, remetendo-os à instância competente para promover o
respectivo julgamento. Portanto, o STF negou à maioria dos réus deste
processo o mesmo direito que foi reconhecido a outros réus, nas mesmas
condições. Assim, a exceção consiste em criar regras que só valem para
alguns réus, exatamente aos que são alcançados pela campanha midiática
em prol de suas condenações.
(3) A utilização pelo Relator do mesmo método da acusação. O Relator
criou um paralelo entre seu voto e um silogismo. Desse modo, a
apreciação individual das condutas e a comprovação das teses da acusação
foram substituídas por uma estrutura lógica em que a premissa maior e a
premissa menor condicionam a conclusão. Dando formato silogístico a um
voto em matéria penal, o Relator vinculou o conseqüente ao antecedente,
presumindo-se assim a culpabilidade dos réus por meio não da comprovação
da acusação, mas por meio de sua inclusão num círculo lógico (argumento
dedutivo), acarretando, assim, violação ao devido processo legal, na
medida em que se utiliza de circunstância mais prejudicial ao cidadão,
ofendendo-se assim garantias e direitos fundamentais, mas também as
normas processuais penais de regência da espécie.
(4) Com o propósito de garantir a supremacia de uma ficção foi
estabelecida a narração como método em uma ação penal. Como no direito
penal exige-se a demonstração cabal das acusações, essa obra de ficção
foi utilizada como fundamento penal. Em muitas ocasiões no julgamento
foi explicitada a ausência de provas. Falou-se até em um genérico
"conjunto probatório", mas nunca se apontou que prova, em que folhas, o
dolo foi comprovado. Foi por isso que se partiu para uma narrativa em
que se gerou uma verossimilhança entre a ficção e a realidade.
Estabelecida a correspondência, passou-se ao passo seguinte que era o de
substituir o exame da acusação pela comprovação das teses da defesa.
Estava montado assim o método aplicado nesse processo, o de substituir a
necessária comprovação das teses da acusação por deduções, próprias ao
método narrativo.
(5) Como se trata de uma ficção, o método narrativo não delimita a
acusação a cada um dos réus, nem as provas, limita-se a inseri-los numa
narrativa para, após a narrativa, chegar à conclusão de sua condenação
em blocos. O direito penal é o direito constitucional do cidadão em ter
sua conduta individualizada, saber exatamente qual é a acusação, saber
quais são as provas que existem contra ele e ter a certeza de que o juiz
não utiliza o mesmo método do acusador. É por isso que cabe à acusação o
ônus da prova e que aos cidadãos é garantida a presunção de inocência.
Nesse processo, a individualização das condutas e a presunção de
inocência foram substituídas por uma peça de ficção que exigiu que os
acusados provassem sua inocência.
(6) Por diversas vezes se disse que as provas eram tênues, que as
provas eram frágeis. Como as provas não são suficientes para fundamentar
condenações na seara penal, substituíram o dolo penal pela culpa do
direito civil. A inexistência de provas gerou uma ficção que se prestou a
criar relações entre as partes de modo que se chegava à suspeita de que
algo houvera ali. Como essa suspeita nunca se comprovou, atribuíram
forma jurídica à suspeita, estabelecendo penas para as deduções. Com
isso bastava arguir se uma conduta era possível de ter sido cometida
para que lhe fosse atribuída veracidade na seara penal. As deduções
realizadas são próprias ao que no direito se chama responsabilidade
civil, nunca à demonstração do dolo, exigida no direito penal, e que
cabe exclusivamente à acusação.
(7) Na dosagem das penas a subordinação de sua quantificação à
prescrição. Durante o julgamento, o advogado Hermes Guerreiro sugere da
tribuna que o tribunal adotasse a pena aplicada pelo Ministro César
Peluso. Imediatamente o Relator o refutou, defendendo sua não aplicação,
pois, nesse caso, a pena estaria prescrita. Assim, fica evidenciada que
o Relator condiciona a definição da pena não à pretensão punitiva, mas à
execução da pena. Quando cidadãos são condenados, concatenam-se
procedimentos. Aplicam-se-lhes as penas cominadas à espécie,
verificando-se a existência de circunstâncias que a minoram ou a
aumentam. Por se tratar de seara penal, o juiz não tem margem para
arbitrariedades, para definir a pena segundo sua vontade. Uma vez
definida a pena, condizente com as especificidades do caso e as
particularidades do cidadão, o passo seguinte é o de sua execução.
Quando se executa a pena é que se verifica sua viabilidade. Nesta
passagem ficou demonstrado que o Relator subordinou a dose da pena à sua
viabilidade. Outra demonstração que ratifica esse vício jurídico, e que
evidencia que não se trata de mero acidente, ocorreu quando o Relator
aplicou, a um dos réus, lei não vigente à época dos fatos sancionados.
Alertado pelo Ministro Ricardo Lewandowski de que o princípio da
irretroatividade da lei penal não estava sendo observado, o Relator
substituiu a lei mais recente pela que regia o caso, mantendo, porém, a
mesma penalidade. Ocorre que na lei anterior os fatos cominados tinham
sanção menor. Como justificar a manutenção da mesma pena quando as
cominações eram diferentes? Essa contradição se explica apenas pela
subordinação da dose da pena à sua viabilidade. Uma vez mais fica
demonstrada a incorreção procedimental, o que mais uma vez evidencia
tratar-se de um julgamento de exceção.
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