Tarso Genro: Investigar a simbiose entre sistema político, Estado e crime
A instalação da CPI sobre a possível rede criminosa do
contraventor Cachoeira abre uma extraordinária oportunidade de
investigar a fundo, não só um caso concreto, mas os métodos, a cultura, a
simbiose entre o sistema político, o Estado e as organizações
criminosas politizadas. Estas não só interferem na pauta administrativa
dos governos, mas também na pauta política dos partidos e podem
mancomunar-se com órgãos de imprensa para transitar interessses
econômicos e políticos. O artigo é de Tarso Genro.
por Tarso Genro, em Carta Maior
Ao contrário do que torcem — e em parte patrocinam significativos
setores da mídia — não está se abrindo uma crise com a instalação da CPI
sobre a possível rede criminosa do contraventor Cachoeira. Abre-se,
sim, uma extraordinária oportunidade de investigar a fundo, não só um
caso concreto, mas os métodos, a cultura, a simbiose (às vezes
espontânea e no mais das vezes deliberada), entre o sistema político, o
Estado e as organizações criminosas politizadas. Estas, como já está
provado, não só interferem na pauta administrativa dos governos, mas
também na pauta política dos partidos e podem mancomunar-se com órgãos
de imprensa para transitar, ou interesses de grupos econômicos
-criminosos ou não- ou interesses dos diferentes partidos aos quais
estes órgão são simpáticos.
Para que esta oportunidade seja aproveitada é necessário, porém, que a
CPI tenha a predominância de parlamentares que não tenham medo. Não
tenham medo de que o seu passado seja revelado – um passado complicado
fragilizaria o resultado da CPI -, não tenham medo de ser achincalhados
pela imprensa, pois à medida que contrariarem os interesses que ela
defende serão ridicularizados por algum motivo ou atacados na sua
honradez. Não tenham medo, sobretudo, de encontrar algum resíduo de
envolvimento seu, na teia de interesses, manipulada pelo grupo ora
apontado como criminoso.
Uma parte da esquerda, na defensiva em função do cerco a que foi
submetida principalmente no primeiro governo do Presidente Lula,
convenceu-se que as denúncias feitas pela imprensa não passavam de
montagens para nos desgastar. Ora, é razoável supor que muitas denúncias
são forjadas (em função de brigas entre empreiteiras, por exemplo, ou
para desmoralizar lideranças que são importantes para os governos), mas
tomar as denúncias como produto de uma conspiração é errado. É deixar de
lado que o estado brasileiro, historicamente cartorial, bacharelesco,
barroco nos seus procedimentos e forjado sob o patrocínio do nosso
liberalismo pouco republicano, tem um sistema político-eleitoral e
partidário, totalmente estimulante aos desvios de conduta e às condutas
que propiciam a corrupção.
O uso que a mídia faz dos eventos de corrupção, para tentar destruir o
PT e a esquerda é, na verdade, um elemento da luta política por
projetos diferentes de estado e de democracia. São diferentes concepções
de republicanismo que estão em jogo, entre um republicanismo elitista e
“globalizado” pelo capital financeiro e um republicanismo plebeu,
participativo e aberto aos movimentos dos “de baixo”. Este, considera
urgente a redução das desigualdades sociais e regionais, mesmo que isso
se choque contra as receitas dos FMI e do Banco Central Europeu: um
republicanismo do Consenso de Washington e um republicanismo do
anti-Consenso de Washington, é o que está em jogo.
O fato, porém, da corrupção ser “usada” pela mídia, nas suas
campanhas anti-esquerda, não quer dizer que ela não exista, inclusive no
nosso meio. Então, o que se trata, não é de “amaciar” os fatos, mas de
disputar o seu “uso” – o tratamento político dos fatos – para fortalecer
uma das duas principais concepções de República que caracterizam o
grande embate político nacional na atualidade. O “aceite” deste embate
político tem um terreno fértil na CPI, em instalação, e a esquerda
brasileira poderá agora, se tiver uma estratégia unitária adequada,
amalgamar um conjunto de forças em torno dos seus propósitos
republicanos e democráticos.
A atual CPI, ao que tudo indica, vai se debruçar sobre um sofisticado
sistema duplamente criminoso: ele promove diretamente, de um lado, a
apropriação de recursos públicos para fruição de grupos privados
criminosos (através da corrupção) e, de outra parte, promove a
deformação ainda maior do sistema político (através de criação de
agendas políticas), para cooptar pessoas, vincular mandatos ao crime e,
também, certamente, financiar campanhas eleitorais. Se de tudo que está
sendo publicado 50% for verdadeiro trata-se de um patamar de organização
superior da corrupção, que já adquire um estatuto diferenciado. Nele, o
crime e a política não apenas interferem-se, reciprocamente, mas já
compõem um todo único, com alto grau de organicidade e sofisticação.
O pior que pode acontecer é que a condução da CPI não permita
investigações profundas e que seus membros, eventualmente, cortejem mais
os holofotes do que a busca da verdade, ou que ocorram acordos para
“flexibilizar” resultados, por realismo eleitoral. Nesta hipótese,
ficarão fortalecidos aqueles que hoje estão empenhados em desgastar a
esfera da política, que significa relativizar, cada vez mais, a força
das instituições do estado e o sentido republicano da nossa democracia.
Este serviço, aliás, já está sendo feito pela oposição de direita ao
governo Dilma, pois já conseguiram semear a informação que o governo
“está preocupado” com os resultados da CPI. A oposição demotucana faz
isso com objetivos muitos claros: para que todos esqueçam as raízes
partidárias profundas, já visíveis, neste escândalo de repercussão
mundial, mas que também é uma boa oportunidade de virada republicana na
democracia brasileira.
(*) Tarso Genro é governador do Estado do Rio Grande do Sul.
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