Autor conta bastidores
da “Guerra Suja”
Cláudio Guerra revelou nomes que compunham os órgãos responsáveis pela repressão
O
Conversa Afiada reproduz post da
Carta Maior:
À Carta Maior, Rogério Medeiros
relembra o primeiro contato com o ex-delegado do Dops do Espírito
Santo, que culminou na publicação de “Memórias de uma Guerra Suja”, em
parceria com Marcelo Netto. O livro é composto por uma série de
depoimentos em primeira pessoa, nos quais Cláudio Antônio Guerra, hoje
com 71 anos, admite participação em crimes na ditadura, além de revelar
nomes que compunham os órgãos responsáveis pela repressão.
Isabel Harari
São Paulo – “Ele estava muito
magro, esquelético. Na maca do hospital, vestindo o uniforme presidiário
me disse que queria falar tudo. Contou que era outro homem, um novo
Cláudio Guerra, e queria entregar sua vida pra eu escrever. Tomei um
susto”. O jornalista Rogério Medeiros relembra o primeiro contato com o
ex-delegado do Departamento de Ordem Política Social (DOPS) do Espírito
Santo, que culminou na publicação do livro “Memórias de uma Guerra Suja”
(Editora Topbooks, R$ 44), em parceria com Marcelo Netto.
O livro é composto por uma
série de depoimentos em primeira pessoa nos quais Cláudio Antônio
Guerra, hoje com 71 anos, admite participação em crimes cometidos nas
décadas de 70 e 80, além de revelar nomes que compunham os órgãos de
repressão no período militar. O ex-delegado confessa, por exemplo, que
incinerou 11 corpos de militantes políticos em uma usina de
cana-de-açúcar no norte do Rio de Janeiro em 1973, entre eles o de Ana
Rosa Kucinski e David Capistrano. Admite que esteve na reunião em que
foi determinada a morte do delegado do Dops de São Paulo, Sérgio Fleury
em 1979, e sua participação no atentado contra o show de 1º de maio no
Pavilhão do Riocentro, dois anos depois. Também revela sua participação
no assassinato do jornalista Alexandre Von Boungarten e denuncia outros
projetos que visavam a implantação definitiva da ditadura militar no
Brasil.
Ainda na década de 70, Rogério
Medeiros fez uma vasta investigação sobre Cláudio Guerra: desde sua
trajetória como oficial de justiça no interior do Espírito Santo até a
entrada na polícia e sua consolidação com um dos mais importantes homens
do Dops. Foram publicadas uma série de reportagens no Jornal do Brasil
que desmistificaram a imagem de Guerra, que até então era visto como
“defensor da ordem e dos bons costumes”. Foi revelada sua ligação com o
crime organizado, a participação em uma ação que culminou na morte de 43
pessoas, entre trabalhadores e lideranças rurais, e acusações de queima
de arquivos públicos. “A matéria que escrevi para o JB colocava em jogo
essa imagem de justiceiro, combatente do crime. E aí ele cai na
esparrela. O governador Max Mauro fez o inquérito e entregou à polícia
federal. Ele [Guerra] surge como chefe do crime organizado e em seguida
vai preso”, conta Medeiros.
A condenação de Guerra também
advém de sua relação estreita com o assassinato do bicheiro Jonathas
Borlamarques de Souza em 1982, além de sua ligação com a prática do jogo
ilegal. O ex-delegado do Dops é acusado, ainda, de matar sua primeira
esposa e ex-cunhada em 1980, crime pelo qual ele alega inocência até
hoje e cuja condenação continua em aberto.
Após sete anos na prisão,
Guerra é transferido para uma casa de repouso, onde cumpre liberdade
condicional. “Na cadeia eu passei a conhecer Jesus. Ao me aprofundar no
conhecimento da palavra do Senhor, vi a necessidade de caminhar para
além do perdão. E assim resolvi vir a público revelar todos os meus atos
quando trabalhei em favor do regime militar. Aquilo que para mim era
matar um inimigo ficou claro, com Jesus, não passar de crime hediondo,
que a partir de agora todos vão conhecer. (…) Passei a acreditar que
poderia ter uma vida nova, na companhia de deus. Agora minha luta é
esta: ter uma vida normal. Estou em paz”. Hoje Guerra é pastor da igreja
Assembléia de Deus em Vitória (ES).
A confecção do livro levou
cerca de três anos. Embates e atritos ocorreram antre os jornalistas e o
relator, consequência da dificuldade de apuração dos fatos, da
relutância em resgatar uma memória tão antiga e o receio de denunciar
nomes ainda em voga no cenário político brasileiro. “Ou diz tudo ou não
diz nada”, essa foi a frase proferida por Medeiros diante dos temores de
Guerra. O jornalista também comenta o fato de o livro ser narrado em
primeira pessoa, foco de discussão entre os profissionais no processo de
composição das memórias: “Ele tinha que falar em primeira pessoa, ele
tinha que dizer que matou. Não adianta nada nós escrevermos que ele fez
isso, fez aquilo… Isso para poder ser coerente até com seu discurso de
que está deixando tudo isso pra trás e entrando em outra vida ”.
A ligação entre Guerra e
Medeiros embasa-se em critérios estritamente profissionais, diz o
jornalista. Ele conta que em todos os encontros manteve uma distância de
seu entrevistado, tratando-o como um “criminoso”, fato que também foi
motivo de impasses durante a organização do livro. “Eu não estou aqui
para defender o Cláudio. Eu fiz o meu papel de pegar os fatos e
averiguar para ver se eles tinham mesmo acontecido. Eu não tenho uma
relação próxima com ele. Eu trabalhei com ele. Depois da publicação do
livro nós não mantemos contato”.
Marcelo Netto, que segundo a
editora do livro, a Topbooks, recusa-se a dar entrevistas, construiu
outro tipo de relação com seu entrevistado. Na apresentação do livro
escreve: “Em nossas longas conversas pessoais e pelo Skype tentei
entender o que ia dentro da sua cabeça. Fustigava sua memória, mas
procurava compreender a sua fé e o que o motivava a falar depois de
tanto tempo. (…) Prometi que, na medida do possível, vou estar ao seu
lado na caminhada que começa com a publicação do seu depoimento”.
Na mesma apresentação, Netto
faz menção ao jornal Folha de S. Paulo e às Organizações Globo, bem como
a seus respectivos dirigentes, Paulo Frias e Roberto Marinho,
agradecendo-os pela importância que tiveram na sua formação profissional
e revelando sua relação íntima com ambos. As duas páginas nas quais o
jornalista escreve seu agradecimento também contém trechos em que o
autor pede, de certa forma, desculpas pelo conteúdo do livro.
Há, nos relatos de Guerra,
partes em que revela a participação da Folha em atentados contra
militantes políticos em São Paulo e a presença constante de José
Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, chefe de direção de programação e
produção da TV Globo, na sauna em que os militares e simpatizantes do
regime se encontravam para planejar ações que visavam a implantação
definitiva da ditadura no Brasil.
A quebra do silêncio de Guerra,
para Netto, representa um importante passo para a consolidação da
democracia no país. “Os militares não devem ter medo de conviver com os
erros de um passado que acabou levando, por caminhos tortos, a um Brasil
melhor”.
Ex-militares e componentes da
Comunidade de Informação, “conjunto de órgãos estatais responsáveis pela
segurança interna do país e pelo combate à subversão”, citados por
Guerra, alegam que os relatos do ex-delegado são falaciosos. O coronel
Juarez e o coronel Ustra anunciaram publicamente que não o conhecem. Mas
Guerra respondeu que está disposto a enfrentá-los na Comissão da
Verdade.
A ausência de seu nome em
listas de entidades de defesa dos direitos humanos explicaria-se porque
ele não era considerado um torturador, e sim um matador. Outro fator que
explicaria a inexistência do nome de Guerra nesses documentos é o uso
frequente de codinomes como Dr. Reinaldo e Stanislau Meirelles. Muitos
afirmam, porém, que o depoimento é fruto de um surto de loucura.
Medeiros desmente: “Ele está completamente consciente do que está
fazendo. Nos três anos que convivemos isso ficou claro pra nós ”.
Segundo Guerra, foi a fé
reavivada na cadeia o motivo pelo qual revelou seu passado publicamente.
“Cláudio quer deixar o passado pra trás e entrar em uma vida religiosa.
Ele quer fazer isso. Não estou dizendo que é possível”, afirma
Medeiros. O jornalista, no entanto, não acredita que o discurso do
ex-delegado seja pautado apenas por motivos religiosos: “Por renome. Ele
começou a contar tudo porque passou a conviver estritamente com a
mídia. De repente resolveu fazer carreira como personalidade, como
pastor. Ele quis sair fora do passado. Ele não quer se situar como se
fosse um homem em busca de perdão, que tivesse arrependido. É assim: a
vida para trás é essa e daqui pra frente eu vou ter outra vida ”.
Guerra saiu da casa de idosos
em Vitória, onde estava hospedado, e recusa-se a dar entrevistas.
Afirmou que só vai aparecer em público depois que for à Comissão da
Verdade.
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