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terça-feira, 14 de setembro de 2010


Governo quer ampliar mar territorial para proteger pré-sal

O governo quer aumentar a soberania brasileira sobre 238 mil quilômetros quadrados do oceano. É uma imposição estratégica, contra o risco de ter uma marinha estrangeira em frente à nossa plataforma continental


Por José Carlos Ruy

Qual é o limite que existe entre a liberdade dos mares e a soberania das nações? Esta é uma discussão antiga, que a decisão da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (CIRM), um organismo do governo brasileiro, de colocar sob proteção especial uma área de 238  mil quilômetros quadrados nas áreas do pré-sal, renova.

A resolução foi publicada no Diário Oficial da União em 3 de setembro (às vésperas do feriado da Independência) e reafirma uma reivindicação brasileira feita à Comissão de Limites da Plataforma Continental da ONU em 2004 com um objetivo preciso: incorporar ao território brasileiro e proteger uma área que, com as descobertas recentes de grandes reservas de petróleo e gás, ganhou uma importância geopolítica incontestável.

Mares livres?

A disputa pelos mares vem desde o final da Idade Média, quando cidades-estado italianas ligadas ao comércio marítimo procuraram reservar para si partes do mar por onde seus navios circulavam para garantir o monopólio de passagem por elas.

Este esforço monopolista cresceu quando Portugal e Espanha exploraram o Atlântico, a partir do século 15, encontrando o continente americano na margem oeste daquele oceano, e a passagem marítima para as Índias.

A longa disputa diplomática que marcou a segunda metade do século 15 dividiu o mar entre aquelas duas potências, acordo ratificado por bulas papais, ordens régias e tratados como o de Tordesilhas, de 1494. A divisão durou cerca de um século, e começou a ser contestada quando a Holanda emergiu como potência européia no começo do século 17 e passou a exigir a liberdade dos mares, numa disputa militar e diplomática intensa na qual se destacou o holandês Hugo Grócio que, contra o monopólio ibérico, perguntava: "pode uma injustiça prolongada criar um direito?"

O direito, entretanto, está mais solidamente amparado na força das armas do que na argumentação e a questão foi resolvida pelo tratado de 1609 que, envolvendo Espanha e Portugal, reconheceu a independência da Holanda e concordou com a navegação de seus navios no Atlântico.

Estava estabelecido o princípio do mar como território internacional, aberto a todas as nações e povos. E, para a defesa nacional, foi sendo estabelecido aos poucos o conceito de mar territorial - aquele que os países precisam para garantir sua defesa contra ataques de inimigos pelo mar, e sobre o qual as nações exercem sua plena soberania.

Um tiro de canhão

No período que vai do século 18 ao início do século 20, o mar territorial era uma faixa de três milhas náuticas de largura (cerca de seis quilômetros), que corresponde ao alcance de um tiro de canhão - o direito marítimo ficava condicionado assim à capacidade das fortalezas na costa para afastar ameaças. Foi o critério adotado pela Inglaterra, EUA, França e inúmeras outras nações, dentro de um princípio jurídico amplamente aceito que dizia, em latim, "terrae potestas finitur ubi finitur armorum vis" ("o poder da terra acaba onde acaba a força das armas").

Foi o enorme desenvolvimento tecnológico no século 20 que tornou aquele conceito caduco. O uso de aviões, mísseis, porta-aviões, armas nucleares e toda a parafernália bélica que se difundiu principalmente depois da Segunda Grande Guerra, ampliou o alcance da "força das armas" e o velho conceito do "tiro de canhão" perdeu a validade.

O progresso técnico refletiu-se também no aumento da capacidade de exploração econômica do mar. Em consequência, muitos países passaram a reivindicar uma faixa mais larga para proteger recursos pesqueiros e minerais, e também para evitar a contaminação de suas águas e costas pelas atividades econômicas desenvolvidas por navios estrangeiros em alto mar, e afastar ameaças por mar durante a guerra.

200 milhas

Durante a Segunda Grande Guerra os litorais foram ameaçados por navios de guerra estrangeiros; um exemplo foi o afundamento por submarinos alemães de 18 navios brasileiros, em águas territoriais nacionais, deixando mais de 900 mortos.

Naquela ocasião a discussão sobre os limites das águas territoriais era intensa. A Declaração do Panamá (1939) chegou a propor a criação de uma zona de proteção que variava de 300 a 1.200 milhas! Mas, em 1941, sob pressão do governo dos EUA, o Comitê Jurídico Interamericano recomendou a adoção de 12 milhas marítimas.

Os países sul americanos foram pioneiros na adoção do mar de 200 milhas (370 quilômetros). O primeiro foi o Chile, que o adotou na década de 1940, numa ação defensiva contra a exploração predatória do mar em suas costas, seguido por Peru e Equador.

A controvérsia foi alimentada por episódios agressivos como aquele que ficou conhecido como a "guerra da lagosta", quando pesqueiros franceses invadiram águas territoriais brasileiras (1961-1963) e só foram afastados depois de ameaça da intervenção da Força Aérea Brasileira.

A discussão abrangia a Organização das Nações Unidas (ONU), que desde o final da década de 1950 começava a estabelecer as bases de um acordo sobre a questão. Nesse contexto o governo brasileiro (na época, o general Médici) adotou, em 1970, o mar territorial de 200 milhas (decreto-lei nº 1.098, de 25/03/1970).

O debate atravessou a década de 1970 e foi concluído em 1982, com a realização da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, em Montego Bay, na Jamaica, que adotou o limite de 12 milhas para o mar territorial e inovou ao criar as zonas econômicas exclusivas, de 200 milhas.

Direito soberano

A Convenção foi assinada pelo Brasil em 1988 (que a ratificou em 1994). Ela entrou em vigor em 1995 e hoje, tem a adesão de 156 países (exceto os Estados Unidos...). Antes disso o Brasil aprovou a lei nº 8.617, de 04/01/1993, que segue as normas internacionais e define:

a) a soberania nacional sobre o mar territorial de 12 milhas;

b) a zona contígua, uma faixa entre 12 e 24 milhas marítimas, na qual o Brasil pode fiscalizar navios de qualquer nacionalidade e reprimir eventuais crimes e irregularidades;

c) a zona econômica exclusiva até 200 milhas marítimas, onde a exploração dos recursos naturais (vivos ou não vivos) só pode ser feita mediante aprovação do governo brasileiro, a quem cabe também o direito de regulamentar a pesquisa científica e qualquer outro tipo de intervenção no mar, em seu leito ou subsolo;

d) a plataforma continental, formada pelo leito do mar e por seu subsolo, encarada como prolongação natural do território terrestre, ou até o limite de 200 milhas a partir da costa, fixado de acordo com critérios estabelecidos pela Convenção de Montego Bay. Nela o Brasil exerce direitos de soberania para a exploração dos recursos naturais, e detém o direito de regulamentar a pesquisa científica e as demais intervenções sobre o mar, em seu leito ou subsolo;

e) finalmente, a lei reconhece - de acordo com a Convenção - o direito de "passagem inocente" pelas áreas marítimas sob soberania brasileira dos navios de qualquer nacionalidade, desde que em missão de paz e em atividades lícitas.

Amazônia Azul

Esta é a base jurídica que fundamenta a pretensão brasileira de ampliar a área marinha sob seu controle. A Convenção de Montego Bay assegura que, no prazo de dez anos após sua ratificação, os países têm o direito de ampliar a área da plataforma continental sob sua soberania. Assim, em 2004, o governo brasileiro solicitou à Comissão de Limites da Plataforma Continental das Nações Unidas (CLPC) a ampliação da soberania nacional sobre uma faixa do mar de 950 mil quilômetros quadrados para além das 200 milhas e, desde abril de 2007, recebeu sinal verde da ONU para incorporar 75% dessa área (712 mil quilômetros quadrados, uma área que corresponde à soma dos territórios de São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná). Ele compreende cinco áreas: cone do Amazonas, cadeia Norte brasileiro, cadeia Vitória e Trindade, platô de São Paulo e margem continental Sul. A inclusão do platô de São Paulo já foi aceita pela ONU e as demais ainda estão em negociação. O trecho que ficou de fora (238 mil quilômetros quadrados) é a área incluída na resolução publicada no dia 3.

No final, o Brasil pretende exercer sua soberania sobre uma área do mar equivalente a 4,5 milhões de quilômetros quadrados, o que equivale a metade de seu território "seco". É o que a Marinha denomina, para ressaltar sua importância estratégica, de “Amazônia Azul”.

Trata-se de uma questão geopolítica extremamente importante, fundamental para a segurança do país e sua soberania neste momento em que há uma "corrida ao fundo do mar" impulsionada pelo avanço das tecnologias de exploração e pela valorização do preço do petróleo.

Essa “corrida” impõe inclusive a disputa pelo direito de uso econômico de áreas situadas em águas internacionais. Como disse o comandante reformado da Marinha e assessor técnico do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), Antonio José Teixeira (em entrevista à BBC) “se o Brasil não garantir a presença nessas áreas próximas ao litoral brasileiro, podemos ter a presença de uma marinha estrangeira em frente à nossa plataforma continental”. Ele defende uma "presença maior no Atlântico Sul” pois, caso contrário, “vamos ter na nossa cara outros países desenvolvendo atividades que o Brasil poderia estar fazendo, sozinho ou em parceria com outros”.

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